A Estrada de Ferro para o Patrimonialismo: Subvertendo consensos e compreendendo a estrutura política brasileira

Orlando Lima • 11 de outubro de 2025


I.

Compreender a cultura estratégica de uma nação é desvendar a essência dessa nação. Inversamente, para compreender plenamente um país, é essencial recuperar e examinar sua tradição de pensamento estratégico, tanto no sentido de um corpo de literatura teórica conscientemente elaborado sobre estratégia e arte de governar, quanto na forma como seus líderes, ao longo do tempo, interpretaram e reagiram aos desafios e oportunidades do mundo. Somente a partir desse ato de introspecção pode-se construir uma visão sólida, que sirva de base para um projeto nacional.

E quanto ao Brasil, nesse contexto? Em certos aspectos, a rica e complexa história da nação foi relegada ao esquecimento. A trajetória histórica do Brasil, marcada por processos de colonização, independência e desenvolvimento, está, no entanto, repleta de lições que podem sustentar um pensamento estratégico brasileiro robusto. Para que essa estratégia se materialize, é necessário um esforço consciente de recuperação, compreensão e reformulação do pensamento político da nação. Trata-se de um processo que requer o estudo atento da história brasileira e o reconhecimento das dinâmicas internas que moldaram sua identidade.

Desenvolver um estilo nacional de pensamento estratégico não é um exercício vazio de nostalgia. Significa identificar o que constitui o "espírito" do Brasil como nação, traçando um caminho que permita não apenas superar adversidades, mas também construir uma visão clara e inspiradora de futuro. A formulação dessa estratégia exige um diálogo constante entre passado e futuro, entre tradição e inovação, um equilíbrio dinâmico que permita a criação de uma nação forte, consciente de seus valores e confiante em seu potencial.

II.

Após as eleições municipais de 2024, o prefeito do Recife, João Campos, reeleito em uma impressionante vitória no primeiro turno com 78,11% dos votos, participou de uma entrevista no programa Roda Viva. A discussão trouxe uma pergunta curiosa quando um jornalista questionou o político sobre quais livros haviam influenciado sua visão de mundo. Campos, neto do ex-governador Miguel Arraes e herdeiro de uma longa linhagem de poder em Pernambuco, respondeu com três títulos que afirmou terem sido fundamentais para sua formação: Why Nations Fail, de Daron Acemoğlu; Utopia for Realists, de Rutger Bregman; e a Trilogia Getúlio, de Lira Neto.

Essa resposta, como era de se esperar, gerou reações acaloradas. Muitos acharam incomum que um líder de uma tradicional família pernambucana envolvida por décadas na política local mencionasse dois livros de autores estrangeiros para explicar sua visão de mundo, em vez de obras de referência nacionais. Também surgiram vozes céticas, duvidando da autenticidade da seleção e até mesmo da ideia de que Campos tivesse lido essas obras, sugerindo que poderia ter sido uma escolha deliberada para parecer bem-informado e cosmopolita.

Mas talvez o que importe nessa resposta esteja menos na dúvida sobre a sinceridade do prefeito e mais no simbolismo dessas escolhas. A mistura dessas obras reflete uma visão contraditória que, em certa medida, caracteriza as elites políticas brasileiras, especialmente as do Nordeste e de Pernambuco, que frequentemente legitimam o poder com um discurso de modernidade e progresso, mas o mantêm por meio de práticas de extração de recursos, patrimonialismo e autoritarismo. Esses três livros, apesar de suas diferenças, parecem compor uma tríade sintomática desse pensamento ambíguo: de um lado, a busca por um ideal modernizador e utópico; de outro, o enraizamento em práticas tradicionais de poder.

Why Nations Fail, de Daron Acemoğlu, é conhecido por sua tese de que instituições inclusivas e extrativas são os principais motores do desenvolvimento ou da estagnação de um país. Para o autor, sociedades que adotam instituições extrativas, onde poder e riqueza se concentram nas mãos de poucos, tendem a fracassar. É uma visão com eco peculiar no contexto brasileiro, onde a concentração de poder político e econômico continua sendo uma realidade difícil de contornar. A escolha desse livro por João Campos, um político de família tradicional, carrega uma ironia histórica. Seria ele realmente capaz de aplicar na prática o que Acemoğlu teoriza, combatendo estruturas de exclusão e concentração de poder das quais sua própria casa fez parte por gerações?

Utopia for Realists, de Rutger Bregman, apresenta uma abordagem mais esperançosa, com propostas voltadas a tornar o mundo mais justo e igualitário, como a renda básica universal e a redução da jornada de trabalho. Essas ideias modernas implicam uma visão de mundo que pretende romper com o status quo em direção a uma sociedade menos desigual. No entanto, a implementação efetiva dessas propostas em um contexto marcado pelo patrimonialismo e autoritarismo é muito mais desafiadora. Até que ponto as ideias progressistas de Bregman podem prosperar em um sistema no qual o poder é fortemente centralizado e as estruturas políticas locais resistem a mudanças radicais?

A Trilogia Getúlio, de Lira Neto, narra a trajetória de um dos líderes mais influentes e controversos da história brasileira, o ex-presidente Getúlio Vargas, cujo governo moldou o Brasil contemporâneo com reformas trabalhistas e industriais, mas também aprofundou elementos de autoritarismo e personalismo já mencionados. Vargas é visto como o criador de uma época em que a centralização do poder, acompanhada de concessões sociais, marcou profundamente a política brasileira. É significativo que João Campos inclua essa obra em seu repertório, pois Getúlio personifica um modelo de liderança centralizadora que ainda ressoa no Brasil, especialmente nas relações entre elites políticas e sociedade. Serve como um lembrete dos riscos de qualquer ideal de progresso associado a métodos autoritários de controle.

Essas escolhas literárias revelam a tensão intrínseca das elites políticas brasileiras entre a autoidentificação com os (supostos) valores de progresso e modernidade e a manutenção de práticas patrimonialistas e, muitas vezes, autoritárias. Essa contradição, que permeia a história política do país, está particularmente presente no Nordeste, com sua herança oligárquica profundamente enraizada. Ao invocar essas obras, Campos parece dar voz, talvez de forma involuntária, a essa dualidade espiritual das elites políticas brasileiras: um desejo de avançar em direção a um ideal de justiça e inclusão, acompanhado de uma silenciosa, mas persistente, convivência com as técnicas mais primitivas de poder e com a manutenção de uma relação abusiva entre eleitorado e classe política.

Na sua busca por uma visão moderna e crítica, João Campos parece ecoar a postura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), sociólogo formado pela USP, que também trilhava um caminho ambivalente entre modernização política e raízes profundas do ethos brasileiro. Em 2003, FHC prefaciou uma edição de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, uma das obras mais celebradas e, ao mesmo tempo, mais controversas da historiografia nacional. Na introdução, o ex-presidente oferece uma análise que mistura elogios relutantes com críticas à obra e ao autor. FHC não diminui a relevância histórica de Freyre, mas aponta os limites de uma interpretação que, segundo ele, exalta quase romanticamente o caráter “cordial” e o sincretismo racial da sociedade brasileira sem enfrentar diretamente a violência, a desigualdade e o racismo que, em sua visão, caracterizam o Brasil.

Para Cardoso, a obra magna de Freyre representava uma visão branca e colonial, que estava em seu cerne presa a uma narrativa que falava da perspectiva do colonizador. Nas palavras de FHC, a visão de Freyre é uma “ficção” que acomoda, idealiza e, em certa medida, distorce as contradições da sociedade brasileira. Ele via a interpretação freyreana como um “achatamento” dos verdadeiros problemas do Brasil, oferecendo ao país um espelho em que a colonização aparecia como uma história de convivência harmoniosa, e não como uma realidade de exploração e opressão.

O contexto em que FHC fez essa análise também é significativo. Como intelectual e político, ele fazia parte de uma geração social-democrata que viu o fim da Guerra Fria e a ascensão da globalização como um marco do “Fim da História” — uma era de liberalismo triunfante em que as ideologias pareciam convergir. Cardoso — ao lado de figuras como Bill Clinton, Tony Blair e António Guterres — liderou uma tentativa de conciliar ideais de justiça social com a livre operação dos mecanismos de mercado e com políticas voltadas à abertura econômica. Esses políticos, embora oriundos de partidos de esquerda ou centro-esquerda, defendiam uma abordagem que combinava Estado de bem-estar social com orientação liberal, buscando modernizar o Estado sem romper com a economia de mercado.

As reflexões de FHC se concentravam na questão essencial: o ethos brasileiro e sua incompatibilidade com o ideal liberal. Em uma observação notável, ele argumentou que a cultura brasileira — historicamente patrimonialista, personalista e coletivista — conflita com o liberalismo, que valoriza relações contratuais, normas impessoais e individualismo. A sociedade brasileira, com sua organização centralizada e apego ao clientelismo e aos favores, não se encaixa naturalmente no modelo liberal anglo-saxão, no qual o Estado é apenas um árbitro impessoal entre indivíduos autônomos. Para o sociólogo da USP, o tecido social brasileiro não está preparado para a racionalidade impessoal da transição do status ao contrato, mas moldado por tradições que resistem a esses preceitos.

Podemos dizer que ele está errado? Creio que não. Concordo plenamente com ele nesse ponto. Nosso desacordo está no que apontamos como solução para o problema. Cardoso pretende descartar o Brasil real para impor esse modelo artificial e estranho à sociedade; eu, ao contrário, pretendo resgatar o Brasil, livrando-o dessa forma institucional que não dialoga com o país nem com sua tradição política.

Nesse sentido, é irônico pensar que FHC, um dos maiores sociólogos do país, desejasse se livrar da figura de Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter” de Mário de Andrade. Macunaíma representa o espírito ambíguo do Brasil: ao mesmo tempo astuto e preguiçoso, adaptável e indiferente, é uma personagem que encarna o ethos que FHC, em sua análise, critica como obstáculo à modernidade brasileira. Macunaíma é, para muitos, a síntese de um caráter acomodado e da busca por vantagens imediatas, características que não se alinham com a mentalidade liberal. FHC, como intelectual e modernizador, desejava que o Brasil superasse essa mentalidade, criando uma sociedade regida por instituições fortes e normas impessoais.

E aqui emerge um ponto particularmente contraditório: foi o próprio ex-presidente Cardoso quem implementou o mecanismo da reeleição no Brasil, marcando uma virada na dinâmica política do país. A reeleição, embora considerada um avanço importante para a estabilidade política em muitos aspectos, rompeu com a lógica contracíclica antes dominante na política brasileira. Antes, mandatos curtos e não renováveis incentivavam políticas voltadas ao bem público, já que os governantes não podiam se perpetuar no poder. Ao permitir a reeleição, FHC inaugurou uma dinâmica cíclica em que a manutenção do poder se tornou um novo vetor, estimulando estratégias de autopreservação caracterizadas por políticas de curto prazo, voltadas a recompensas eleitorais imediatas.

Esse desdobramento revela a tensão central do modernizador no Brasil, que sempre se vê contido pelas forças arcaicas que insiste em subestimar ou contornar. O paradoxo é que, ao tentar construir um projeto de Estado racional e moderno, o reformador frequentemente acaba reforçando os mesmos mecanismos de poder que antes criticava. Essa é a tensão fundamental e crônica entre as estruturas arcaicas do Brasil — patrimonialismo, clientelismo, personalismo — e o modelo institucional liberal tentado periodicamente. É uma dissonância entre forma e conteúdo: enquanto as instituições liberais exigem um campo de impessoalidade e respeito à regra geral, a tradição política brasileira ainda opera sob o peso das relações pessoais e da busca por controle centralizado. Os modernizadores do Brasil, em sua ânsia de atualizar o país, acabam permanecendo presos ao velho ethos de uma elite que não pode, ou não quer, abrir mão dos privilégios de sua posição. Esse dilema continua a assombrar o país, reduzindo o tal progresso a meros “conceitos de plano”, sempre reabsorvidos pelo peso das estruturas arcaicas que sustentam o sistema político.

III.

O consenso parece sólido: o Brasil é, em sua essência, um país patrimonialista. Essa herança remonta ao período colonial e continua estruturando as relações de poder até hoje. Para compreender esse diagnóstico, é fundamental esclarecer o que significa o termo “patrimonialismo” e como ele molda nossa realidade. O jurista e sociólogo Raymundo Faoro, em sua obra seminal Os Donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro, investiga o desenvolvimento dessa estrutura no Brasil, que ele considera profundamente enraizada na herança colonial portuguesa. Segundo Faoro, o modelo patrimonialista português foi transplantado para o Brasil colonial e, ao longo dos séculos, tornou-se um molde inflexível que configurou o Estado brasileiro, influenciando-o desde a Independência, passando pelo Império, até a República.

Faoro descreve essa estrutura como uma imutabilidade histórica sustentada por dois pilares: o econômico e o sociopolítico. No aspecto econômico, ele destaca o que chama de “capitalismo politicamente orientado”. Diferentemente do capitalismo liberal, cuja lógica é a de um mercado regulado por leis impessoais, o Estado no Brasil sempre desempenhou um papel de protagonista na economia em favor dos interesses de um grupo específico e privilegiado da sociedade que Faoro chama de “estamento”. Faoro utiliza o conceito de “calculabilidade”, emprestado de Max Weber, para demonstrar como o Estado brasileiro nunca ofereceu segurança jurídica ou previsibilidade para o desenvolvimento econômico livre. Ao contrário, o Estado atua como garantidor dos interesses privados do estamento, interferindo e ajustando regras conforme convém a esse estrato social. Assim, o capitalismo brasileiro adota o aparato técnico da modernidade, mas rejeita sua “alma”, isto é, a racionalidade impessoal e o respeito às normas gerais. Para Faoro, é o Estado que sustenta o capitalismo brasileiro, de modo que, sem ele, esse sistema não resistiria.

No aspecto sociopolítico, Faoro sustenta que a sociedade brasileira não se organiza primordialmente em classes, como ocorre nas sociedades capitalistas liberais. Em vez disso, a sociedade se divide entre o estamento burocrático e a massa restante da população. O estamento, diferentemente de uma classe social, não é definido principalmente por fatores econômicos, mas por vínculos sociais e políticos. Trata-se de um estrato social cuja identidade está fortemente ligada à sua relação com o Estado, e não à atividade econômica. Essa estrutura social estatizada não oferece o potencial universalizante e igualitário típico das sociedades de classe. Em uma sociedade de classes, há possibilidade de mobilidade e articulação de interesses a partir das relações de mercado; já em uma sociedade estatizada, como a brasileira, as barreiras sociais e políticas tornam-se rígidas e excludentes, perpetuando desigualdades e particularismos.

Para Faoro, o estamento é mais do que uma simples burocracia estatal. Embora utilize o aparato burocrático, distingue-se por seu modus vivendi excludente, pelas práticas sociais e políticas que o diferenciam das massas. A burocracia, enquanto organização, é apenas o veículo pelo qual o estamento patrimonialista se afirma e se perpetua; é “burocrática” em função, mas essencialmente expressão da dominação patrimonial. Esse tipo de estrutura, profundamente entranhada no Estado brasileiro, impede a formação de um capitalismo racionalizado no qual os agentes econômicos possam desenvolver livremente seu potencial sob normas estáveis.

O patrimonialismo é, portanto, uma forma específica de dominação em que o poder é exercido de modo a sustentar uma elite que governa como se os bens e cargos públicos fossem propriedade privada. Max Weber oferece uma perspectiva sobre dominação que ajuda a entender esse fenômeno: para ele, dominação não se limita ao exercício cru do poder, mas ao processo pelo qual os dominados aceitam a autoridade do dominador. No patrimonialismo, essa aceitação ocorre de forma quase “natural”, já que a sociedade brasileira historicamente internalizou a autoridade do estamento como algo legítimo e normal, consolidando uma tradição de obediência e conformidade. Aqui, a relação entre dominadores e dominados torna-se um mecanismo em que o estamento reafirma seu poder por meio da validação social de sua autoridade.

Na década de 1990, no entanto, ocorreu uma guinada ideológica em favor do desmonte dessa estrutura, ao menos em parte. Inspirados, entre outros elementos, no diagnóstico de Faoro sobre o patrimonialismo, surgiram várias correntes políticas e econômicas que defendiam a redução do papel do Estado e sua reorganização em bases supostamente modernas e racionais. Ganhou força o discurso de “demonizar” o Estado, buscando reduzi-lo e substituir sua presença pelas forças do mercado. Esse movimento foi acompanhado por uma valorização do “interesse individual” como princípio organizador da sociedade, visto por muitos como uma tentativa de romper com a herança patrimonialista.

Esse esforço de modernização, entretanto, foi recebido com ambivalência e não conseguiu se traduzir em mudança estrutural. Afinal, as raízes do patrimonialismo são profundas na cultura política brasileira, e o Estado patrimonialista não cede facilmente ao ideal de capitalismo liberal. A relação patrimonial entre o estamento e o poder público sobreviveu a todas as tentativas de enxugar o Estado, reconfigurando-se para acomodar as demandas da modernidade, mas sem jamais abandonar sua natureza arcaica — ou seu papel central na política e na economia.

Esse entendimento de patrimonialismo apresentado por Raymundo Faoro, que o define como uma forma de dominação na qual as fronteiras entre público e privado se confundem, é um ponto de partida importante para uma cultura estratégica verdadeiramente brasileira. Mas, em vez de vê-lo como um problema a ser erradicado, proponho uma alternativa: ele deve ser assumido. Esse é o nosso ethos como brasileiros; um traço profundamente enraizado na estrutura da sociedade e na psicologia coletiva. Os grandes projetos de modernização do Estado e da sociedade no Brasil são, em essência, importações de ideias e estruturas sem raízes no contexto nacional e acabam nos lançando em um estado de tensão e desajuste permanentes.

O caráter esquizofrênico do Estado brasileiro — dividido entre o ideal da modernização e a prática do personalismo — decorre dessa dissonância fundamental entre o modelo institucional estrangeiro e a cultura política que herdamos. A tentativa de impor um projeto político-institucional externo, que segue o padrão da racionalidade impessoal e objetiva, encontra resistência em um país que sempre cultivou as relações pessoais e o contato direto como formas legítimas de exercer e compreender o poder. Aqui não se trata de rejeitar princípios universais de impessoalidade e transparência, mas de reconhecer que, no Brasil, o poder assume uma expressão distinta, na qual relações familiares, patronagem e proximidade ocupam um espaço central. Ao impor estruturas que desconsideram esse aspecto, acabamos perpetuando um sistema marcado por paradoxos e distorções, sem nunca conseguir alinhar forma e conteúdo.

O primeiro passo para superar essa dualidade não é lutar contra a essência do Brasil, mas criar mecanismos de incentivo que estejam em sintonia com ela. Para construir um Estado verdadeiramente funcional no Brasil, é necessário reconhecer a centralidade das redes de influência e das relações pessoais e não descartá-las como vestígios de uma prática arcaica. Essas relações podem, de fato, ser utilizadas a favor do bem comum, se forem incentivadas a se desenvolver dentro de parâmetros que promovam responsabilidade, prestação de contas e transparência, ao mesmo tempo em que respeitem o vínculo direto que existe entre figuras públicas e suas bases. O Brasil não é uma versão defeituosa de outros países, mas uma entidade que possui sua própria lógica e trajetória. A aceitação disso não significa celebrar a corrupção ou o clientelismo, mas buscar, dentro das práticas e valores brasileiros, uma forma de construir um Estado mais coerente, eficaz e orgânico.

IV.

Dois exemplos ajudam a compreender a tensão particular entre cultura política e institucionalidade que marca o Brasil: os casos de Itapetinga, no Estado da Bahia, e Melgaço, no Estado do Pará. Neles, vislumbramos como a estrutura patrimonialista brasileira opera em contextos locais, refletindo uma dinâmica em que o poder público serve a interesses pessoais, enquanto as necessidades da população permanecem em segundo plano.

Em Itapetinga, uma cidade de economia modesta, o prefeito eleito para o próximo mandato receberá um salário de R$28.400, valor superior ao dos prefeitos de 17 capitais estaduais do país. O contraste entre a situação econômica da população e a remuneração do prefeito não poderia ser mais chocante. Com base em dados do IBGE, apenas 26% da população possui emprego formal, enquanto 34% recebem uma renda mensal inferior a 50% do salário-mínimo. Aqueles que estão empregados formalmente não estão muito melhor: recebem em média apenas 1.6 vezes o valor do salário-mínimo, o que coloca a cidade nas últimas posições no ranking de renda do estado. Já o prefeito desfrutará de uma remuneração que o coloca entre os gestores municipais mais bem pagos do Brasil.

Esse salário elevado torna-se ainda mais questionável quando se considera que o prefeito eleito sucederá seu próprio sobrinho no cargo. Essa prática reforça o caráter personalista da administração pública local, onde a prefeitura se torna o principal veículo de poder e prestígio. Em uma cidade tão dependente de programas assistenciais e com poucas opções de emprego formal, a prefeitura é o maior empregador e, consequentemente, o eixo do poder local. O cargo de prefeito não é apenas uma função administrativa, mas a “maior empresa” da cidade. Nesse modelo, o desenvolvimento econômico vem em segundo plano em relação à manutenção dos privilégios pessoais do gestor. O prefeito não precisa apresentar resultados que justifiquem seu alto salário, pois sua reeleição depende mais da distribuição de cargos e benefícios do que de avanços econômicos e sociais.

Em Melgaço, no Pará — município com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil —, observa-se um padrão de disfunção estrutural ainda mais agudo. Apenas 6% do orçamento municipal provém de receitas próprias, enquanto 94% vêm de transferências estaduais e federais. A principal razão para essa dependência é a ausência de propriedade privada formalizada. Sem títulos de posse ou regularização fundiária, não há arrecadação de IPTU, e a relação de poder sobre a terra se desenvolve de forma informal e tácita. A prefeitura torna-se a autoridade central na ausência de um sistema legal de propriedade, criando uma relação de dependência entre administração pública e população. Nesse cenário, os servidores municipais ocupam posições de destaque, em um contexto em que o aparato formal de direitos e deveres é substituído por um sistema primitivo de trocas e acordos informais.

Em Melgaço, formou-se um contrato social não escrito sob o qual as pessoas constroem suas casas em terras ocupadas sem qualquer direito formal de propriedade, e a prefeitura, por sua vez, tolera essa ocupação. Essa permissividade, entretanto, também implica a ausência de obrigações do poder público para com esses “proprietários”, o que a população aceita em troca da tolerância da ocupação ilegal. Esses exemplos ilustram a precariedade da vida sob o modelo institucional brasileiro, no qual as autoridades locais operam de maneira quase feudal.

A relação entre poderosos e subordinados, tão característica do Brasil, manifesta-se de formas que reforçam o legado patrimonialista e personalista da política nacional. Em muitas cidades, é comum os filhos de políticos locais adotarem o primeiro nome dos pais como sobrenome eleitoral, reforçando assim o vínculo e a continuidade da dinastia familiar no poder. Essa designação não é apenas uma escolha de identificação: funciona como um selo de pertencimento, um lembrete ao eleitorado de que esse candidato é herdeiro direto de uma tradição. Em cidades menores, onde a memória familiar e os laços de confiança têm peso decisivo, essa estratégia fortalece o poder local com um toque quase feudal, sustentando dinastias que se perpetuam pela conexão afetiva e pela influência sobre o imaginário popular.

Nas grandes cidades, encontramos o mesmo fenômeno oligárquico, mas em outro formato. João Campos, já mencionado no caso de Recife, é um exemplo disso. Descendente de duas das famílias políticas mais influentes de Pernambuco, ele representa a convergência de linhagens poderosas, carregando o peso de um nome que mobiliza eleitores. Esse tipo de identidade política vinculada à hereditariedade representa um entrave ainda maior, em que o poder se torna quase um patrimônio familiar, transmitido não apenas por competência ou visão pública, mas por direito de nascimento.

Outro tipo comum de figura política, igualmente moldada pelo contexto de escassez e pela ineficiência crônica dos serviços públicos, é o candidato com vínculo funcional a uma área de necessidade social. Sem citar casos específicos, pode-se imaginar um candidato fictício com um cargo modesto na área da saúde, que utiliza seu status de “insider” para ajudar a população de maneira concreta. Diante da precariedade do Sistema Único de Saúde (SUS), esse indivíduo pode agilizar consultas e resolver pequenos problemas, acumulando capital político e credibilidade junto à comunidade. Essa capacidade de transformar uma falha do sistema em algo parecido com um favor pessoal o torna um candidato ideal, convertendo a habilidade de oferecer alívio temporário e uma face familiar para problemas cotidianos em capital político sólido. Ele então se lança na disputa eleitoral, mobilizando seu prestígio local e a dependência do eleitorado em sua figura para fornecer o que deveria ser um direito universal.

Esses fenômenos são mais do que meras estratégias de campanha: são reflexos diretos da natureza patrimonialista e clientelista que permeia a política brasileira. Quando o poder é estruturado com base na lógica de benefícios e patronagem, os incentivos não se alinham em torno da melhoria do sistema; pelo contrário, preservam a precariedade, que retroalimenta essas figuras políticas. Cidades pequenas e médias no Brasil tornam-se zonas onde a falha sistêmica é a força motriz que perpetua dinastias e reforça a relação de dependência entre governante e governados. Sob esse mecanismo, o “progresso” é indesejável, pois a política clientelista se alimenta da permanência do atraso e da insuficiência dos serviços públicos.

Os políticos, portanto, não são motivados a consertar o sistema, já que é precisamente sua falha que os mantém no poder. Não há interesse genuíno em reformas estruturais ou em desenvolver políticas que tornem os cidadãos menos dependentes do intermediário local. Quanto mais fragmentado e disfuncional o sistema, mais fácil é para esses personagens se tornarem indispensáveis ao eleitorado, pois suas promessas não tratam de melhorar o coletivo, mas de atender seletivamente às necessidades pessoais e emergenciais do eleitor. Trata-se de uma política em que o que sustenta o mandato não é o progresso ou as melhorias, mas a continuidade de uma relação desigual e personalista, na qual o político se coloca quase como patrono de seu eleitorado, em vez de servidor público representando os interesses do bem comum. Essa lógica perversa retarda o desenvolvimento e mantém grande parte do país em um ciclo de precariedade e dependência.

V.

Toda ação política tem origem no campo das ideias. Compreender essa gênese é fundamental, pois a proposta que desenvolvo inspira-se em outra proposta do político e intelectual brasileiro Renan Santos: a Lei de Responsabilidade Gerencial. Essa lei não é um esforço idealista de “moralizar” a política brasileira, tampouco busca criar um cenário utópico de virtude sueca. Ao contrário, ela se alinha ao que Gilberto Freyre chamou de “antagonismos equilibrados”, conceito que expressa a capacidade do Brasil de conciliar realidades díspares, respeitando a natureza patrimonialista que permeia nossa cultura política.

A Lei de Responsabilidade Gerencial não pretende alterar radicalmente o caráter de nossa política, mas criar um sistema de incentivos que equilibre os privilégios dos ocupantes de cargos públicos com suas responsabilidades sociais. Em vez de um confronto direto com o ethos patrimonialista, propõe-se uma estrutura que utiliza esse ethos em favor do desenvolvimento coletivo. A ideia é que os benefícios e vantagens atribuídos aos agentes públicos — como acesso a fundos eleitorais, possibilidades de aumento salarial e continuidade de transferências federais — sejam condicionados ao cumprimento de metas concretas e mensuráveis.

Essas metas incluem avanços no Índice de Desenvolvimento Humano, melhorias nos rankings de educação básica, combate à evasão escolar, expansão de programas de saneamento, entre outras diretrizes quantificáveis. Não se trata apenas de estabelecer objetivos abstratos, mas de promover uma cultura de resultados que engaje os políticos a se comprometerem de forma eficiente com as necessidades de suas comunidades. Esse sistema de definição de metas criaria uma camada de responsabilidade que, ainda que patrimonial em sua natureza, seria orientada ao bem comum de maneira estruturada.

A inspiração para essa lei também se encontra nos escritos do jurista alemão Hans-Bernd Schäfer, que observou que países subdesenvolvidos — ou “de baixa renda” — precisam de normas jurídicas precisas e altamente específicas para garantir que decisões políticas não sejam distorcidas pelos interesses individuais de magistrados ou legisladores. A Lei de Responsabilidade Gerencial segue esse mesmo espírito: quanto mais específicas e claras forem as metas e critérios, menor o espaço para interpretações duvidosas e manobras que desviem de sua finalidade original. Em vez de tentar erradicar o patrimonialismo do sistema político, a lei o aproveita, utilizando-o como motor para objetivos coletivos. As metas de desempenho funcionam como bússolas, incentivando ações orientadas ao desenvolvimento social sem desrespeitar a lógica do “personalismo” enraizado na prática política do país. Em última instância, o objetivo não é moralizar, mas estruturar um sistema que, dentro da realidade política brasileira, conduza a sociedade a avanços concretos em áreas básicas e essenciais.

Ao criar uma estrutura de incentivos que harmonize a cultura patrimonialista com os objetivos do interesse público, essa lei oferece um modelo inovador de governança. Ela reconhece que a política brasileira opera dentro de sua própria matriz, e não em um molde importado de teorias liberais ou modernizadoras. É uma proposta que, sem ignorar as idiossincrasias da história nacional, busca estabelecer um pacto social realista e funcional, permitindo que o Estado brasileiro cresça segundo sua própria lógica.

Cabe, assim, concluir evocando uma das obras citadas por João Campos: Why Nations Fail. A leitura comum, liberal, desse livro sustenta que instituições fortes são o motor que conduz uma nação ao sucesso — como se instituições fossem entidades autônomas, capazes de emergir espontaneamente, sem conexão com cultura, história ou sociedade. Eu, entretanto, defendo uma visão inversa e mais abrangente: são as nações robustas, ancoradas em raízes culturais profundas e com um cenário político consolidado, que moldam e fortalecem instituições particulares. A construção institucional depende da solidez do corpo social e político que lhe dá forma e significado. Instituições não surgem do nada; elas são reflexo do poder coletivo, da organização e dos valores de um país.

Se olharmos para a história brasileira, o fracasso institucional tem origens muito profundas. A dinâmica semifeudal da estrutura social reflete uma elite ambivalente que busca concomitantemente a modernidade americana e a preservação de privilégios. Essa elite construiu um sistema no qual o patrimonialismo se mistura a visões americanófilas e idealistas, numa tentativa de adaptar instituições que refletem valores totalmente distintos à realidade nacional. Em vez de criar um modelo próprio, com instituições que representem verdadeiramente o ethos brasileiro, pensadores nacionais importaram ideias que fracassam ao colidir com uma cultura política profundamente enraizada no personalismo e nos vínculos de lealdade.

É nessa tensão constante que reside a maior fragilidade do Brasil. Quando a elite tenta modernizar o país sem alterar a base patrimonialista, acaba enfraquecendo as próprias instituições que pretendia fortalecer. Leis e regras tornam-se estruturas vazias, servindo mais a um papel simbólico do que efetivo, pois carecem de uma estrutura social que realmente as legitime.

Portanto, o fracasso das instituições nacionais não está apenas em sua construção, mas em seu distanciamento da realidade brasileira. Erramos ao tentar impor uma lógica institucional estrangeira a uma cultura que, em essência, ainda opera em uma dinâmica quase medieval de privilégios e relações pessoais. O Brasil precisa, antes de tudo, de uma visão que parta da realidade, restaure a autenticidade política e sirva de base para instituições verdadeiramente vigorosas, enraizadas no que o Brasil de fato é — e não no que idealizamos que os brasileiros sejam.

Orlando Lima é editor-chefe da Revista Valete e acadêmico de ciências políticas.